“All extreme opinions consume themselves.” ~Marty Rubin
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No passado dia 16, o professor Samuel Paty foi assassinado por um rapaz de 18 anos de uma forma extremamente violenta, que chocou o mundo. Tudo começou quando o professor numa aula sobre liberdade de expressão mostrou as afamadas caricaturas de Maomé que já haviam estado na origem do atentado à redação do jornal francês Charlie Hebdo em 2015. Uma das alunas acabou por falar da situação ao pai, que começou um movimento de ódio contra o professor nas redes sociais. Alegadamente, Abdullah Anzorov, o jovem de 18 anos que matou Samuel Paty, terá “aderido” a este “culto de ódio” de tal forma que pagou centenas a um aluno para localizar o professor para depois matá-lo.
Mas não é sobre o caso de Samuel Paty que escrevo hoje, esta situação serve, por ser um retrato dos efeitos do extremismo, de ponte para o tema de hoje: o extremismo em volta da pandemia.
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A militarização do vírus é um fenómeno presente desde o início da propagação do mesmo e tem por base aquela ideia de que somos todos soldados a postos para combater o inimigo comum e invisível. A máscara é o nosso escudo, o gel desinfetante é uma arma e em frente marchamos em nome da grandiosa história da nossa nação. Este é um discurso muito perigoso e que, infelizmente, é largamente utilizado por grande parte dos nossos representantes políticos. Aliás, se formos à conta de Instagram do nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a descrição do último post começa assim: “Nesta guerra, como em todas as guerras, só há um efetivo inimigo, invisível, insidioso e, por isso, perigoso.”
A ideia de abordar uma pandemia como se de uma guerra se tratasse apenas promove o pânico e o extremismo. A pandemia não é algo que devamos enfrentar com o espírito com que os nossos antepassados iam para a guerra, nem com o que usavam para navegar nas naus para as colónias, aliás este último é um espírito que não devemos empregar nunca mais. A pandemia tem de ser enfrentada num espírito de cooperação e não de conflito. Não estamos numa competição para ver que país lida melhor com a situação. Este é um problema que atinge todos e, por isso, em conjunto o devemos solucionar. Na era da globalização, esta ideia de respostas nacionais individuais a uma ameaça global é completamente desprovida de sentido.
O extremismo em volta da pandemia. Como utilizador habitual dos transportes públicos já assisti a inúmeras situações de extremismo completamente desproporcional. Pessoas insultadas porque estão a usar a máscara debaixo do nariz, pessoas a reclamar com os que entram num comboio que já vai cheio, pessoas a responder mal aos que pedem para se sentar ao seu lado, etc...
No outro dia, há cerca de um mês, estava a entrar num comboio que ia de Lisboa-Rossio para Sintra e que, apesar de ainda estarmos na estação de origem, já estava cheio. Pedi a uma rapariga para me sentar ao lado dela, o que não faria diferença nenhuma, dado que o comboio estava cheio e se não estivesse ao lado dela estava na parte central da carruagem apinhado com o resto das pessoas. Ela também estava sentada em frente a dois estranhos. Portanto, a situação ideal de “distância de segurança” já estava à partida arruinada. Contudo, quando eu lhe perguntei se me podia sentar junto a ela a resposta foi: “Poder pode, não o posso impedir, mas é por irresponsáveis como você que isto nunca mais acaba.”
Outro episódio. No início da obrigação do uso de máscaras em espaços fechados, estava a sair de uma loja com a Matilde e tirámos a máscara antes de estarmos na rua e do nada um condutor parou em frente à loja para gritar connosco e chamar-nos irresponsáveis.
Ainda mais uma. Estava eu à espera do autocarro de máscara posta, isto ainda muito no início da quarentena, e um grupo de ciclistas ao passar por mim começa a ameaçar-me a dizer que eu era um idiota por me arriscar a andar nos transportes públicos e por contribuir assim para a propagação do vírus.
Por fim, há cerca de uma semana, estava num autocarro da Carris que estava cheio e a senhora à minha frente fotografou o autocarro todo para depois publicar as fotos no Facebook e chamar todos os que estavam no autocarro de irresponsáveis. A hipocrisia da situação é algo de tal forma evidente que eu acho que é o exemplo supremo do extremismo que se está a gerar.
Voltemos ao caso de Samuel Paty. Uma situação terrível desencadeada em volta de um culto de “extremismo extremo”, tal como muitos outros episódios do género (ataques terroristas, por exemplo). Esta situação ilustra perfeitamente o perigo do extremismo, parece justificar tudo, parece que entra nas pessoas e elas perdem a capacidade de ser razoáveis. Ser razoável não é ser contras algumas das medidas de prevenção mais extremas, mas também não é ser extremista. Não há nada de razoável num extremismo, e se há uma situação que pede uma gestão racional e razoável é a pandemia atual. Por isso, da próxima vez que forem falar com alguém para avisar que tem de usar máscara, lembrem-se que não são nenhuns guerreiros do apocalipse e evitem falar como superiores. Da próxima vez que exigirem a instalação de uma app como a Stayaway Covid, com o único argumento de que é essencial para combater o vírus e de que já cedemos os nossos dados a diversas aplicações, lembrem-se que a eficácia das mesmas não está comprovada, que se cedemos os nossos dados a outras aplicações fazemo-lo voluntariamente e que podemos facilmente utilizar essas aplicações sem que tenhamos de ceder informações como a nossa localização. Da próxima vez que desesperarem com os números, lembrem-se que o extremismo também mata, que a concentração dos recursos do SNS no combate à COVID-19 tem levado a que muitos outros pacientes sejam postos de lado. Num artigo do PÚBLICO, Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), afirmou que “vamos sentir durante muitos anos a falta de assistência a doentes não covid”.
Em suma, o extremismo não vai resolver o problema. Há que
ser razoável, não estamos a lutar contra um inimigo, estamos a lidar com uma
pandemia.
~Zé
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Os extremismos dos dois lados.
"Centenas de pessoas contestaram este sábado (24/10/2020) as medidas impostas pelo
Governo para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19, com gritos pela
"liberdade" e pela "verdade", numa manifestação realizada na praça do
Rossio, em Lisboa.
A mobilização nacional, que reuniu diversos grupos, teve como objetivo
marcar uma posição contra várias medidas restritivas que consideram
inconstitucionais, incluindo o uso de máscaras obrigatório na rua." ~Correio da Manhã, 24/10/2020
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Mulher expulsa de um autocarro à pancada por estar a tossir sem a máscara. Salvador, Brasil 06/05/2020.
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