O caso da criança de 10 anos grávida e o movimento anti-feminista.

''Estuprador é um filho saudável do patriarcado.''~ .

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No estado de Vitória, no Brasil, uma menina de 10 anos engravidou do tio de 33 que a violava há 4 anos. Quando a gravidez foi descoberta e tornada pública o violador fugiu, porém foi apanhado e preso no passado dia 18 de Agosto. Após o juiz da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus ter dado autorização para se realizar o aborto a menina deu entrada no Hospital Universitário Cassiano António Moraes, em Vitória, para o realizar, contudo o Hospital recusou-se a fazê-lo com a justificação de que o período de gestação já ultrapassava o tempo legal para a interrupção de uma gravidez. No Brasil, o aborto só é legal até às 22 semanas de gestação ou até o feto pesar 500 gramas, em ambas as situações o aborto só se realiza se a gravidez for fruto de uma violação, se a mãe correr risco de vida ou se o feto for encéfalo. Mais tarde, em Pernambuco, a menina acabou por conseguir realizar a interrupção gravidez. 

Sara Giromini, ou como gosta de ser chamada ''Sara Winter'', ex-feminista, militante da extrema-direita, conservadora e apoiante de Bolsonaro, veio a público chamar a menina e o médico responsável pelo aborto de assassinos. Nas redes sociais, Winter divulgou a identidade da menina e a morada do hospital onde o aborto ia ser feito. Fruto desta divulgação, 20 ultra-conservadores juntaram-se à porta do hospital para tentar impedir o procedimento. Contra este protesto organizou-se uma contramanifestação de mulheres que apoiavam a criança. Sara Winter, que teve as redes sociais encerradas depois da divulgação dos dados pessoais da menina, foi detida em Junho por ter participado em atos anti-democráticos que reivindicavam o encerramento do Supremo Tribunal e do Congresso.

A árdua luta contra a gravidez forçada das crianças - Outras Palavras

Depois de pesquisar mais sobre o caso de Sara Winter, o algoritmo do Youtube encheu a minha página com diversos vídeos de debates, entrevistas e até mesmo relatos de mulheres que agora se identificam como ex-feministas ou anti-feministas. Um dos meus objetivos com este artigo é, então, desconstruir alguns dos argumentos apresentados por estas pessoas.
Num debate entre Sara Winter e a feminista Sâmia Bonfim, Winter, mais uma vez, argumenta contra o aborto, dizendo que a solução está em dar as condições necessárias para que as mulheres possam ter filhos e diz que um feto é uma vida tão valiosa como as outras,  argumentos que me deixaram com algumas perguntas:

Que tipo de apoio se dá a uma criança de 10 anos que foi violada pelo tio? Visto que biologicamente uma criança não está pronta para ter um filho. 

Qual é a vida que tem mais valor? 

A vida de uma criança ou a de um feto que não nasceu? 

Porquê é que uma mulher que foi violada tem de ter um filho fruto de violência?

 No caso de uma gravidez resultante de um problema com o método anti-concepcional, porque é que a mulher tem de ser obrigada a ter o filho?

 Porque é que o simples facto de uma mulher NÃO QUERER ter um filho não é suficiente?

Para além disso, é repugnante a falta de empatia por parte de Sara Winter, que também já realizou um aborto e já foi mãe solteira, para com uma criança traumatizada que se continuasse com a gestação provavelmente morreria. 

Debate entre Sara Winter e Sâmia Bonfim.

Noutra entrevista, Ana Campagnolo, anti-feminista e deputada Estadual de Santa Catarina, afirma que a cultura do estupro, ou em português de Portugal a cultura da "violação'', não existe, o que também me deixa indignada. Como pode uma mulher ignorar a sociedade em que vive e deixar-se cegar com o seu privilégio? A cultura de estupro banaliza, legitima e justifica a violência contra a mulher. O valor da mulher está ligado aos seus comportamentos morais e sexuais enquanto o do homem não. 48% dos brasileiros acha incorreto as mulheres saírem com os amigos sem o namorado, 76% critica as mulheres que beijam mais que um homem por noite, 80% acha que as mulheres não deviam ficar bêbadas numa festa, 26% acha que as mulheres que usam roupa justa ou curta estão a ''pedi-las'' e 58% acha que as mulheres são as culpadas por sofrerem violações. Por outro lado, os homens são desde crianças incentivados a ver porno, a serem ''playboys'' e convencem-nos de que os seus comportamentos sexuais são instintivos e incontroláveis, e de que são violentos. Vivemos numa cultura onde os nossos colegas, amigos, pais, namorados, etc... sentem que têm direito sobre o nosso corpo. 

50 mil mulheres são violadas por ano no Brasil, tendo em conta que este número só representa 10% dos casos que realmente existem. Em Portugal, entre 2013 e 2018, houve 4.761 queixas de violação, cerca de 92% das vítimas foram mulheres e dentro deste número 64,1% são menores. 94% dos violadores são homens.




Imagens provenientes do site da APAV.

Como pode a cultura do estupro ser uma mentira quando morrem milhões de mulheres no mundo fruto de violações, violência, abortos ilegais, etc...? Como pode ser uma mentira se uma mulher não tem nem sente a mesma segurança que um homem?   

Para além disso, Ana Campagnolo afirma que a igreja cristã é o que verdadeiramente ajuda as mulheres. No meu ponto de vista uma instituição que, no geral, se tem revelado homofóbica, machista e racista dificilmente ajuda mulheres. As únicas mulheres que são valorizadas na maioria das igrejas são brancas, heterossexuais, virgens, caladas, alienadas e submissas. Quantas de nós não fomos mortas por instituições como a igreja cristã por não nos termos calado ou simplesmente por termos existido?

Entrevista a Ana Campagnolo por Rafinha Bastos.

Vivemos num mundo em que meninas de 10 anos violadas por um familiar são chamadas de assassinas. Vivemos num mundo em que alguns dizem que não existe machismo, homofobia ou racismo e ao mesmo tempo continuamos a ver pessoas a serem mortas apenas por serem elas mesmas. Vivemos numa época em que há mulheres que se dizem orgulhosamente anti-feministas. Chegou a hora de percebemos que o suposto grande progresso moral e ético foi uma mentira, não só não foi assim tão grande, como o pouco que foi conquistado parece estar a ir pelo cano abaixo e é por isso que agora, mais do que nunca, é importante estarmos conscientes e lutar. 

~Matilde

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Ps. Há quem diga que a melhor forma de lidar com os extremistas, neste caso Ana Campagnolo e Sara Winter, é não lhes dando visibilidade. Contudo, considero importante saber como pessoas que se opõem aos meus ideais pensam. Temos de saber com que tipo de argumentos vamos ser atacados para que consigamos um dia, se necessário, responder.



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